Flavio Kothe

Serpent: D.H. Lawrence, Portuguese translation, commentary: Flávio R. Kothe

Snake

by D. H. Lawrence

A snake came to my water-trough
On a hot, hot day, and I in pyjamas for the heat,
To drink there.

In the deep, strange-scented shade of the great dark carob tree
I came down the steps with my pitcher
And must wait, must stand and wait, for there he was at the trough
before me.

He reached down from a fissure in the earth-wall in the gloom
And trailed his yellow-brown slackness soft-bellied down, over
the edge of the stone trough
And rested his throat upon the stone bottom,
And where the water had dripped from the tap, in a small clearness,
He sipped with his straight mouth,
Softly drank through his straight gums, into his slack long body,
Silently.

Someone was before me at my water-trough,
And I, like a second-comer, waiting.

He lifted his head from his drinking, as cattle do,
And looked at me vaguely, as drinking cattle do,
And flickered his two-forked tongue from his lips, and mused
a moment,
And stooped and drank a little more,
Being earth-brown, earth-golden from the burning bowels
of the earth
On the day of Sicilian July, with Etna smoking.

The voice of my education said to me
He must be killed,
For in Sicily the black, black snakes are innocent, the gold
are venomous.

And voices in me said, If you were a man
You would take a stick and break him now, and finish him off.

But must I confess how I liked him,
How glad I was he had come like a guest in quiet, to drink
at my water-trough
And depart peaceful, pacified, and thankless,
Into the burning bowels of this earth?

Was it cowardice, that I dared not kill him?
Was it perversity, that I longed to talk to him?
Was it humility, to feel so honoured?
I felt so honoured.

And yet those voices:
If you were not afraid, you would kill him!

And truly I was afraid, I was most afraid,
But even so, honoured still more
That he should seek my hospitality
From out the dark door of the secret earth.

He drank enough
And lifted his head, dreamily, as one who has drunken,
And flickered his tongue like a forked night on the air, so black,
Seeming to lick his lips,
And looked around like a god, unseeing, into the air,
And slowly turned his head,
And slowly, very slowly, as if thrice adream,
Proceeded to draw his slow length curving round
And climb again the broken bank of my wall-face.

And as he put his head into that dreadful hole,
And as he slowly drew up, snake-easing his shoulders,
and entered farther,
A sort of horror, a sort of protest against his withdrawing into
that horrid black hole,
Deliberately going into the blackness, and slowly drawing
himself after,
Overcame me now his back was turned.

I looked round, I put down my pitcher,
I picked up a clumsy log
And threw it at the water-trough with a clatter.

I think it did not hit him,
But suddenly that part of him that was left behind convulsed
in an undignified haste,
Writhed like lightning, and was gone
Into the black hole, the earth-lipped fissure in the wall-front,
At which, in the intense still noon, I stared with fascination.

And immediately I regretted it.
I thought how paltry, how vulgar, what a mean act!
I despised myself and the voices of my accursed human education.

And I thought of the albatross,
And I wished he would come back, my snake.

For he seemed to me again like a king,
Like a king in exile, uncrowned in the underworld,
Now due to be crowned again.

And so, I missed my chance with one of the lords
Of life.
And I have something to expiate:
A pettiness.

SERPENTE

Flávio R. Kothe
(Tradução e comentário do poema “Serpent” de D. H. Lawrence)*

Uma serpente apareceu na minha cacimba
Em um dia quente, quente, e eu de pijama por causa do calor
Tinha ido lá beber.

Na sombra funda, de estranho aroma, da grande figueira negra
Desci os degraus com minha jarra
E tive de esperar, parar e esperar, pois lá estava ela na cacimba diante de mim.

Desce de uma fissura na parede de terra em penumbra
E vai deslizando seu ventre solto, amarelo e marrom, sobre o limiar da pedra
E descansa seu ventre sobre o fundo de pedra
E onde a água gotejava da torneira, numa pequena clareira,
Ela sorve com a boca aberta,
Drenando suavemente, através das gengivas abertas, para dentro do seu longo corpo relaxado,
Silenciosamente.

Havia alguém antes de mim na minha cacimba,
E eu, como quem chega depois, na espera.

Ela ergueu a cabeça do seu bebedouro, como faz o gado,
E olhou vagamente para mim, como faz o gado que bebe,
E a língua bifurcada surgiu súbita de seus lábios, e por um momento ela divagou,
Parando e bebendo mais um pouco,
Ente marrom da terra, dourado da terra, das entranhas ardentes da terra
Num dia do julho siciliano, com o Etna a fumegar.

A voz da minha formação disse a mim:
Ela tem de ser morta,
Pois na Sicília as pretas, negras serpentes são inocentes; as douradas, venenosas.

E vozes em mim diziam: se tu fosses mesmo homem,
Pegarias um pau e irias quebrá-lo nela, acabando com ela.
Mas, devo confessar o quanto gostei dela,
Quão feliz estava eu que ela tivesse vindo, feito uma hóspede quieta, para beber na minha cacimba
E partindo em paz, apaziguada e sem agradecimentos
Para dentro das entranhas ardentes dessa terra?

Foi covardia não ter ousado matá-la?
Foi perverso querer conversar com ela?
Foi humildade me sentir tão honrado?
Eu me senti tão honrado.

E, no entanto, as tais vozes:
Se não tivesses medo, terias matado!
E na verdade eu estava com medo, estava com muito medo,
Mas, mesmo assim, mais ainda honrado
Por ela ter buscado minha hospitalidade
Vinda da porta escura da terra secreta.

Ela bebeu bastante
E ergueu a cabeça, sonhadoramente, como quem se embriagou,
Fustigando rápida a língua feito uma noite bifurcada no ar, tão negra;
Parecia lamber os beiços,
Olhando ao redor feito uma deusa, sem ver, ar adentro,
E com vagar movia a cabeça
E devagar, muito vagarosamente, como se fora um triplo sonho,
Passou a pintar seu vagaroso comprimento curvo,
Subindo outra vez a parede rachada do meu muro.

E, ao colocar a cabeça para dentro daquele buraco ameaçador,
Devagarinho se içava, facilitando seus ombros feito serpente e entrando mais avante,
Uma espécie de horror, uma espécie de protesto contra sua retirada para dentro daquele horrível buraco negro,
Deliberadamente entrando na escuridão e devagar se arrastando atrás:
Chocou-me então que ela me dera as costas.

Olhei ao redor, coloquei o cântaro no chão,
Catei uma acha pesada
E a joguei com ruído para lá da cacimba.
Creio que não a atingi,
Mas de repente aquela parte que estava fora convulsionou, em pressa nada digna,
Retorcendo-se feito um clarão, e se foi
Para dentro do buraco escuro, na fissura labial da parede murada,
Ficando eu a olhar fascinado no intenso agora dia.

E de imediato lamentei isso.
Pensei: que ato poltrão, quão vulgar, quão baixo!
Desprezei a mim mesmo e às vozes da minha desvairada educação humana.

E eu pensei no albatroz,
E desejei que ela voltasse, minha serpente.

Pois ela me pareceu de novo como uma rainha,
Uma rainha no exílio, sem coroa, no mundo subterrâneo,
Pronta para ser novamente coroada.

E assim perdi a minha chance com uma das nobrezas
Da vida.
E eu tenho algo a expiar:
Uma baixaria.

 

 

APONTAMENTOS
Há uma leitura óbvia desse poema: dar-lhe perfil freudiano, que veria na serpente um símbolo fálico, no beber água a salivação do desejo sexual, no entrar e sair da cova a penetração. O poema seria, então, sobre a descoberta da sexualidade: encanto e terror, desejo e repulsa, atração e agressão. Essa hermenêutica transporia a cena textual para o cenário de categorias psicanalíticas, em que a doutrina se celebraria se redescobrindo no poema. Ela acabaria chegando ao ponto de que havia partido. Seria um ouroboros, uma serpente a morder a própria cauda, como se ela surgisse de si e acabasse em si, num eterno retorno do mesmo.
A serpente desse poema de D. H. Lawrence ecoa outras serpentes, inclusive a figura clássica da águia com uma serpente nos pés: o poder da águia alada domina o mal da serpente rasteira, mas esta tenta derrubar a águia, como se fosse a oposição. Ser oposição é ser o mal; ser situação, o bem. Há uma ambígua tradição no emblema que representa a medicina: uma dupla serpente, como se quem age com venenos pode ser também a cura. A palavra droga como o phármacon grego tem a ambiguidade de, por um lado, significar algo nocivo e, por outro, ser um remédio que cura.
Na tradição clássica, famosas são as três Górgonas, cuja beleza era vista como parecida com Atena e a rivalizar com ela: tiveram os cachos dos cabelos convertidos pela “deusa da sabedoria” em serpentes, como o poder que difama e pune quem ele creia desafiá-lo. Foram condenadas a transformar em pedra quem as olhasse nos olhos. A mais velha, Medusa, foi desposada por um deus que não gostava de Atena. Depois Perseu conseguiu cortar a cabeça da Medusa com ajuda de Atena, usando o truque de não olhar diretamente para ela, só vendo o reflexo no escudo.
Se, sob o império de Atena, a cabeça da Medusa era vista como repleta de serpentes, a petrificar quem a olhasse de frente, e o truque para enfrentá-la foi olhá-la de modo indireto, como faz a linguagem figurada: substitui o terrível por imagens que permitam denominá-lo, nominá-lo e domá-lo. A Medusa iconiza o peso da maldição do poder contra quem ouse rivalizar com ele, não endossar suas pretensões. O desvio para o simbólico permite enfrentar o terrível, a crueza do real.
No processo de criação artística, o artista apreende um impasse existencial e o pereniza, como que lhe dando a imobilidade da pedra, da escultura. O artista, ao enfrentar grandes contradições, topa com o terrífico (como seria saber se o homem é o ser mais admirável ou mais horrível que há na Terra): precisa elaborar a tensão da luta de sua linguagem com os poderes que pretende designar. O poeta, ao petrificar em palavras a cena flutuante, como se fosse um escultor, precisa ir além de si, superar a si mesmo. Gera uma tensão entre o dito e o abscôndito, entre o expresso e o sugerido, com o que faz do poema uma central energética, que só pode ser entendida e vivenciada quando o leitor consegue entrar na tensão entre suas forças antitéticas. Ao reelaborar a tradição e a realidade, o artista dá uma resposta a ambas. A leitura é como a tradução, a tradução é uma forma de leitura.
Esse poema parece mais ligado à tradição bíblica. No Gênesis, a serpente aparece como corporificação do demônio, induzindo ao crime de desobedecer à lei de Jeová. Isso leva os humanos, diz o texto, a serem expulsos do paraíso e a terem de ganhar o pão com o suor do rosto. Inventa-se ainda que teria havido uma “idade de ouro”, que teria havido um paraíso, em que só havia paz, prazer e usufruto, desencadeando uma reversão que gera o ser humano histórico. O trabalho era amaldiçoado: ecoa-se aí a escravidão.
Não havia antes idade de ouro e paraíso. Quem tivesse nascido e crescido neles não teria noção deles. Só a desgraça torna possível supor que pudesse ter havido um paraíso. O antes vem depois do depois. Sem a serpente, não se teria noção do paradisíaco. Embora amaldiçoada, ela é quem gera a possibilidade de se ter noção do paraíso. Desencadeia o trabalho, a ética, a luta pela subsistência, ou seja, o processo civilizatório, a história. Não vem antes e sim depois. O próprio Jeová não percebe logo o que havia se passado: só as atitudes de Adão e Eva é que lhe permitem ter noção do que poderia ter se passado. Ou seja, Jeová aprende com a serpente. Essa narrativa está repleta de lacunas.
Nas andanças dos judeus pelo deserto para pilhar e tomar terras de outros povos como se fossem a Terra Prometida por Jeová, aparece uma praga de serpentes venenosas (em pleno deserto?). Pode haver alguma serpente que sobreviva num deserto, mas não tantas que possam picar centenas ou milhares de pessoas. Jeová havia proibido pouco antes, no primeiro mandamento, que fosse feita qualquer estátua, figura ou imagem de qualquer ente vivo. Isso não o impediu de mandar fazer como soro antiofídico uma estátua de serpente: qualquer um que fosse picado bastaria olhar para ela e ficaria curado. Acredite-se como se quiser: quem traz a vida, traz a morte; quem traz a morte, traz a vida. Duas serpentes entrelaçadas são o emblema da medicina.
Soro antiofídico parece mais garantido do que olhar uma escultura e rezar. A ciência recomenda injeção de soro. Jeová não obedece à lei que ele próprio supostamente havia decretado. Sua moral é, portanto, do “faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço”. Ou seja, ele não é coerente, não cumpre o que acha certo: quer ser o fundamento da moral, mas é imoral.
Na iconologia católica, a figura da serpente aparece sendo pisada pela Virgem Maria. Seria como que a vitória do bem sobre o mal. Bem é concretizar Cristo. Fazer o bem, aí, é pisar no mal, matar. Com o rosto suave de uma virgem que é mãe. Acredite quem quiser, mas quem crê não se pergunta sobre a ambiguidade icônica. O paradoxal é que a imagem exige uma leitura contrária ao que ela própria apresenta. Apresenta-se, então, a versão que for conveniente: fatos são submetidos a narrativas.
Na filosofia, há uma serpente relevante: ela é um dos animais de Zaratustra no Assim falava Zaratustra. Nietzsche sabia da imensa distância entre o que ele pensava e a tradição metafísica cristã. Sabia que tinha de se esconder, feito uma serpente, para não ser morto. Ele não se via como corporificação do mal, pois seria negar a liberdade inerente à distância crítica do seu pensar. Para ele, deuses e líderes religiosos eram configurações de posturas filosóficas, sendo a religião uma caixa de ressonância para a repercussão maior de ideias. Cristo foi, para ele, um pensador ético que se contrapôs aos princípios da ética do patriciado romano.
Zaratustra é um heterônimo que tem vários animais como referência e que são como que heterônimos do heterônimo: águia, camelo, leão, serpente. Ao decifrar estruturas metafísicas profundas, como que sobrevoava os abismos em que outros se viam ameaçados. É o esprit de géométrie preconizado por Pascal e que se complementava nele com a inventiva de uma linguagem sutil, inovadora e soberba. Ele sabia que durante séculos a sua mudança de olhar e inspiração não seria aceita, preconizava a necessidade de longas marchas por desertos hostis. Daí a necessidade das virtudes do camelo. Para encarar o perigo, precisava da coragem do leão. Para conseguir se preservar e continuar as jornadas, precisava ter ainda as virtudes da serpente, que, humilde, rasteja, se camufla e se esconde, para não ser logo destruída.
No poema “Serpent”, D. H. Lawrence estabelece um diálogo sutil com essa tradição e, por fim, dá um passo adiante. Conta-se que o poeta se depara, quando vai buscar água no pátio, com uma serpente venenosa que bebe a água que escorre. Sente um choque. Assim como a água vinha da terra, a serpente também vinha de um buraco no muro. O susto estanca o poeta, a cena passa a ser fixada no papel, como se fosse uma sucessão de estátuas. A água é a origem da vida, a serpente precisa da água como o homem que já não vive mais no paraíso, mas tem de ganhar o pão num dia calorento.
A serpente vem da terra e à terra retorna, assim como o homem há de retornar ao pó de onde provém: concepção egípcia de que haveria semelhança entre barro e carne, mito judaico de que o homem teria sido feito do barro. Os tempos da inconsciência acabaram, é preciso ter consciência e cumprir o dever. Surge o trabalho, o dever, o Estado. A educação que o poeta recebeu ordena que ele trate de matar a serpente. Obedece a essa voz, mas logo se arrepende por ter tentado aniquilar quem lhe aparece como um ser carente como ele. Fazer o mal ao que parece mal mas é igual pode não ser bom.
Ocorre então o prenúncio de uma grande inversão ou reversão da história. A espécie humana é a serpente que apareceu na história, a espécie mais destrutiva e perigosa que a natureza gerou contra si mesma. A invenção de que o homem teria sido criado por algum deus serve para ocultar a barbárie primeva que o define. Ele se vê na serpente. Ele é a serpente.
O poema não é apenas sobre uma serpente, sobre o surgimento e desaparecimento dela. Ele é essa serpente. Ela vai serpenteando pelas linhas do poema, verso após verso, estrofe após estrofe. O poema se instaura com a aparição da serpente, se desenvolve com sua ação e acaba quando ela se vai. Não só a serpente poderia se ver no espelho da água, mas o poeta pode ver a espécie a que pertence com a aparição da serpente.
Ela não faz mal nenhum, mas, ameaçada e agredida pelo homem, precisa buscar refúgio na toca, na terra próxima a um vulcão. O primitivo retorna para reavaliar o que o homem tem chamado de civilização, a celebrar seu próprio percurso. O homem trata de se impor e sobrepor. Sua sanha é destruição. Ele chama isso de progresso. Acredita no deus que ele acredita abençoar esse curso e, assim, se exorciza uma consciência crítica.
Precisaria, no entanto, aprender a retornar à natureza, esquecer as lições destrutivas que a tradição tem ensinado. Torna-se necessário reinventar o homem, para que surja uma espécie melhor que o homem histórico. É o que Nietzsche chamava de Übermensch, que ao ser traduzido por Superman propiciou a hipertrofia da ânsia de poder, da vontade de dominar, traindo o sentido original. A Era do Homem contempla um ser que foi capaz de alterar o clima do planeta, as condições de sobrevivência, extinguir milhares de espécies de animais e plantas.
A serpente não é O Mal; e o homem não é Humano. O que aparece, não é o que parece; o que parece, não é o que aparece. A serpente, se fosse negra, não seria venenosa; tendo o dourado dos reis, é perigosa. Aquela que o poeta encontra é venenosa, mas ela não ataca; ele, que se diz humano, ataca. Ele só é incompetente em matar, mas tem o desejo de matar ditado pela educação que recebeu. Sua educação foi deseducação.
Na serpente o poeta acaba se vendo. Só que tarde demais, só por ter se sentido abandonado. Ele quer ser amado por quem ele agride. Seu amor é sádico, mas não se reconhece como tal.
Ele não quer se ver na figura da serpente. Tem horror não só a ela, mas a se ver nela irmanado. Fascínio que conjuga atração e repulsa. Sendo ela vista como corporificação do mal, precisa ser exorcizada: morte por apedrejamento. Como se carregasse o pecado. Como se, sem pernas, se arrastasse pelo chão por maldição divina. O poeta que tenta acabar com ela se vê como herói, salvador, mas faz o mal contra quem não lhe fez mal. Sente-se primeiro realizado, como quem fez o certo e o justo. Passa a pensar quando para de crer, de reproduzir preconceitos.
Não importa o que ela é: para o homem só importa o que ele crê que ela seja. Por ele supor e crer, gera-se uma sequência de sequelas. A lógica da Inquisição era torturar tanto o suspeito até que ele confessasse o que ela queria que ele confessasse. Por confessar, era culpado. Ao ser punido, tinha a chance de se redimir. Sendo queimado, se purificava.
Os torturadores se viam como beneméritos que davam aos pecadores uma chance de entrar no céu. Eles se viam e eram vistos como virtuosos, santos homens. Sua crueldade era bondade. Essa lógica perversa permeia a mente cristã. Foi transposta das metrópoles ibéricas às colônias. O monoteísmo é uma forma de totalitarismo. Ele é por natureza menos tolerante que o politeísmo. O que foi semeado pode ressurgir em chamas a qualquer momento. A religião católica se diz monoteísta, mas de fato é politeísta, o que pode permitir que se admitam diferentes deuses.
Assim como o batismo é feito com gotas d’água, a serpente recebe o seu nome próprio ao receber o gotejamento da água na cacimba. Em vez de receber um nome de salvação, recebe de condenação. Sendo agredida e correndo riscos, ela se recolhe e se esconde numa cova da terra fumegante, que indicia uma paisagem primeva, como se o planeta se reinventasse outra vez. A paz do ente da natureza está em ficar longe dos que se dizem humanos.
A serpente se torna rainha de um reino potencial, além da história dos humanos. Eles se consideram reis da Terra, entes diletos da criação divina. A cor negra tem servido para designar o negativo, o luto. Se a serpente fosse negra, não seria venenosa; sendo dourada, carrega o veneno em si. Dourado era a cor dileta dos reis e das salas do trono, como se evocassem uma idade do ouro. Revertem-se nas imagens os preconceitos da tradição.
A consciência que, depois de agredir, o poeta arrependido desenvolve – como Pedro após negar Cristo por três vezes – faz com que pense no albatroz. Essa ave marítima, de grande envergadura, aparece em Baudelaire como um ícone do poeta, que é capaz de fazer voos abrangentes e distantes, mas fica sem jeito no tombadilho do navio, tornando-se objeto de troça dos marujos. O albatroz sinaliza a grandeza e o horizonte amplo que o ser humano tem aqui e ali se mostrado capaz de alcançar. Ele não é apenas um símbolo do poeta. A maior grandeza do homem seria ele ser capaz de se superar. Não se trata de uma fantasia necessária para suportar no homem histórico um mármore com o qual seria possível esculpir um ser além do humano.
O poema “Serpente” não é apenas sobre a aparição e o desaparecimento de uma serpente. Ela também não é apenas o símbolo plurissignificativo que dialoga com a tradição bíblica, clássica e moderna. Ele começa quando ela aparece e acaba assim que ela desaparece. A sonoridade do poema evoca o deslisar de uma serpente. Substitui o horror pelo fascínio.
Ele foi escrito em Taormina, na Sicília, perto de Messina. A região parece ter sido colonizada pelos gregos, mas o teatro, feito de tijolos, aparenta ser romano. Perto do estreito que separa a ilha do continente, rota de antigos contatos entre Europa, África e Ásia.
“Serpente” não é apenas sobre uma serpente: ele é a própria serpente, é um pente sobre o ser. O poema, na sucessão de seus versos, é a própria serpente coleando de estrofe em estrofe, de página em página. Há contorcionismos da palavra “slow” como os movimentos recurvos da serpente serpenteando pela página. Muitos versos começam com “and”, como se fosse um novo anel conectado aos anteriores. Assim como as vértebras móveis se mobilizam sob a pele, assim também as equivalências e variações paradigmáticas verbais vão se movendo e formando a sucessão dos versos.
Ao reverter o mito da serpente no paraíso, o poema revela que está disposto a tratar do mais vital: o cerne da soberania. Sua reflexão se faz no silêncio do ente que desliza e serpenteia ao longo das páginas. Embora feito com palavras, fala de quem parece não ter fala. Dá fala a quem cala. Sua sugestão maior reside no espaço do não dito expressamente.
A serpente é silenciosa. Mais ainda quando entra na toca e retorna à terra. O poema começa com a aparição da serpente e acaba com sua desaparição. Ele é a serpente verbalizada, é gerado pelo que cria. Ela não é simples metáfora. Ao construir uma nova fábula, o poema faz a desconstrução da fábula do paraíso. Questiona-se e inverte-se o seu sentido, sem que seja dito qual seria o sentido inverso. Questiona-se o sentido da história. Ele ainda terá de ser descoberto por quem conseguir admitir que o ser humano tem mais de serpente do que está disposto a aceitar. Ele mata, então, para não ver. O poema reverte isso para que aprenda a ser, para que se aprenda a ver.
A parte mais difícil de traduzir foi o última verso: a pettines. Poderia ser pequeneza, pequenice, mesquinharia, baixaria. Todas estariam certas, mas cada uma erra pela carência que é apontada nas outras vertentes. Nenhuma desdobraria o termo pet, um pequeno animal de adoção, um ente de predileção. Nem evocaria “a prettiness”, uma belezura, um encanto. Ou seja, a tradução ajudar a ler melhor o original, que tem sentidos ocultos à primeira leitura. Traduzir é um modo de ler, toda tradução é uma leitura.

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* Nota: A tradução e o comentário são alternativas e complementações ao que aparece nas aulas de Jacques Derrida, A besta e o soberano (Seminário), volume I (2001-2002), Rio, Via Vérita, 1ª edição 2016, tradução de Marco Casanova, p. 353 e ss. No livro há uma tradução diferente.

Flávio R. Kothe was an associate professor in literary theory and comparative literature and a full professor of aesthetics at the University of Brasília.He is currently a senior researcher and is responsible for the edition of the Journal of Aesthetics and Semiotics. Author of about 50 books and 500 other works in the genres essay, literary criticism, short story, poetry, novel, novel and translation. He was president of the Academy of Letters of Brazil for three terms, of whose Journal he has been editor. He was a pioneer in Brazil in studies on the Frankfurt school, Russian formalism, Bakhtin’s circle, semiotics of culture, hermetic poetry, hermeneutics. He translated Kafka, Celan, Marx, Adorno, Benjamin, Süsskind and others into Portuguese.